terça-feira, 2 de março de 2010

Tocando Harpas – E atirando-se no Abismo

“É necessário ter em si o caos, para gerar uma estrela dançante.”

100_4989 Um segredo que poucos sabem é que o espetáculo “Anjos, uma espécie de razão não comentada” está impregnado de filosofia. Filosofia incutida e em hipótese alguma apresentada de maneira clara. Ela é mesmo caótica! Criar um espetáculo realmente inédito é tarefa difícil, desde a confecção do texto teatral até o acabamento final. O mau dramaturgo dá lições de moral, quer ensinar os outros ou impor uma visão particularmente sua.  E o bom apenas mostra e deixa com que cada um tenha uma inteiramente sua. Não me incluo na primeira categoria, e espero (com pensamento sacro-santo) estar indo de encontro à segunda.

Em nosso ofício, certeza, não é coisa absoluta. Ao contrário disso, o100_5002 que é pertinente é simplesmente a dúvida. Acho que quando um ator, diretor ou dramaturgo duvida de si mesmo é que começa a criar. É necessário fazer-se sempre muitas perguntas, mas nem sempre é importante encontrar as respostas. É assim que somos na vida e é assim que nasce vida neste ofício tão belo e magnífico. Há muito percebi que todas as artes caminham, na verdade, juntas. Contudo, a arte menos compreendida ainda é a do ator. Posto que parece simples representar uma vida. Mas o problema é que a vida nem sempre é tão simples quanto parece. Isso me lembrou um poudo de Ecce Homo.

DSC05195 Em seu livro autobiográfico — Ecce homo — Nietzsche traz seu conceito de filosofia como a expressão de seu corpo filosófico. Para ele, a filosofia é a expressão da dureza, da força, do enfrentamento, do ar gélido dos cumes; a filosofia é para aqueles que possuem a força de espírito para a solidão, para o enfrentamento do medo, para aqueles que não se submetem à segurança dos ideais prontos:

Quem sabe respirar o ar forte de meus escritos sabe que é um ar da altitude, um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão o perigo de se resfriar não é pequeno. O gelo está perto, a solidão é descomunal — mas com que tranqüilidade estão todas as coisas à luz! Com que liberdade se respira! Quanto se sente abaixo de si! — filosofia, tal como até agora entendi e vivi, é a vida voluntária em gelo e altas montanhas — a procura por tudo o que é estrangeiro e problemático na existência, por tudo aquilo que até agora foi exilado pela moral. De uma longa experiência que me foi dada por andanças pelo proibido, aprendi a considerar as causas pelas quais até agora se moralizou e idealizou, de modo muito diferente do que seria desejável: a história escondida dos filósofos, a psicologia de seus grandes nomes, veio à luz para mim. (Nietzsche, 1983, p. 366)

O exercício do pensar100_4906 a filosofia é uma atividade fisiológica que requer a expressão da força como critério para sua elaboração. A metáfora da natureza é bastante explorada por Nietzsche na tentativa de expressar, de forma concreta, seu conceito de filosofia como expressão da dureza. No Zaratustra, Nietzsche afirma:

Tem coragem, irmão meu? Tem valentia? Não coragem diante de testemunhas, mas valentia de solitário e daquele ao qual nem mesmo um deus faz mais do que ser espectador. As almas frias, cegas, bêbadas, não são para mim corajosas. Tem coração aquele que conhece o medo, mas tem somente controle sobre o medo; aquele que olha para o abismo, mas com orgulho. Que olha para o abismo, mas com olhos de águia — que com garras de águia prende o abismo: isto constitui a coragem. (Nietzsche, 1997, p. 273)

DSC05094 E o exercício de nossa arte é exatamente ter coragem e “respirar” como respira cada vida que queremos trazer à luz. (Tem coragem, irmão meu?)  Eu sinto pena de atores que são dirigidos quase como se estivessem sendo obrigados a fazer coisas que nunca seriam criadas por iniciativa sua. Atores que simplesmente cumprem o que quer o diretor. Espetáculo feito assim, jamais será dos atores! Isso é quase como não adubar a terra e já colher os frutos. Um bom diretor antes de tudo é um bom observador e conhecedor da psicologia que atentende a cada um dos atores a quem dirige. Dirigir é apontar caminhos e não arrastar um ator ou um espetáculo como se fosse gado pela estrada a que se julga mais “plausível”. Ator é, antes de tudo, um pouco daquilo que o público deseja ver: um ser vivo. É evidente que não somos exatamente o que são nossos personagens e, para ser isso, é preciso fazer o ator entender que é preciso entrar no caos para  encontrar um novo indivíduo dentro de si. Por isso gosto de criar e fazer com que outros criem junto comigo. Quando isso acontece em plenitude, o objeto da labuta nos traz sempre mais certezas que dúvidas.

E o melhor disso é: Nossos “anjos” serão capazes de florear os seus céus ou deixá-los como noites sem lua em que sempre nos advém muitas e boas dúvidas!

A boa dúvida é a que te abre para a vida.

E a má, a que te fecha as portas do mundo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário